"Cantar não é só ir ao palco e actuar: é um testemunho"

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Esta noite, às 21.30, o Grande Auditório da Culturgest recebe a visita de Jean-Paul Poletti (Ghjuvanpaulu Poletti) e do seu Coro de Sartène. Cantor, compositor, pedagogo, Poletti é um dos nomes de referência da polifonia tradicional da Córsega.

Antes daquele que é o seu primeiro concerto "a sério" em Lisboa (esteve cá em 1992), falou ao DN do evento, do seu percurso e daqueloutro da música e identidade corsas.

Do repertório desta noite, fala de "uma miscelânea de músicas sacras oral e escrita: a escrita, oriunda das belas obras eruditas dos monges franciscanos de Sartène; a oral, da polifonia tradicional imemorial". Incluídos estão ainda "excertos da minha oratória Terra Mea".

Poletti revisita o canto franciscano, "baseado no cantochão, mas que os monges depois casaram com as estruturas polifónicas da Córsega oral, criando a partir daí". Daí ser o latim "a grande língua da polifonia corsa, quase 80% do repertório", só depois vindo "o corso e o toscano".

A polifonia "é o grande canto, sem contestação: primeiro a duas vozes, como no Organum primitivo, a três vozes desde o século XVI", mas coexistiu sempre com a monodia. Esta era "o grande território do canto feminino", nomeadamente "as vociferações fúnebres". A polifonia, "longamente privilégio masculino", já é hoje feita por mulheres: "a Córsega já é 'emancipada' há algum tempo...", diz Poletti, não sem ironia.

Sobre a vocalidade, fala de "um cruzamento de muitas técnicas", úteis até "a nível do canto lírico" porque "desenvolve muito a cor vocal de cada cantor". Cor vocal que vê como "o que faz a riqueza do canto corso". Este usa uma vocalidade "apoiada no diafragma" e nos músculos do abdómen - "os sons graves são feitos cá em baixo", explica. A partir daí, há "a voz de peito, a gutural e a das cavidades superiores". Diz das zonas agudas do canto - "as dos melismas" - serem "herança da igreja, pois os monges preocupavam-se muito com a dicção clara". A evolução das linguagens resultou na "coexistência do modal e do tonal, das cadências plagais e das perfeitas, que hoje vemos como parte da tradição, mas que é também uma recriação".

Na Córsega, a polifonia "vem já do sec. IX: há um canto a duas vozes profano e outro sacro, este uma Ode ao Santo Sepulcro". Poletti pergunta-se: "Qual terá sido o primeiro?..." Certa, certa é a primazia dos franciscanos na Córsega: "Foram os primeiros a ir para lá. Para os corsos, são sinónimo de clero. Estiveram sempre muito próximos do povo, dos pobres, do mundo campesino." Por isso, "há uma grande ligação entre eles e a população".

Um histórico do renascimento do canto corso nos anos 70, Poletti explica esse facto como "uma reacção à progressiva perda de identidade", por acção da França, "o estado mais jacobino que existe". Desse "movimento contestatário", Poletti diz que "as suas reivindicações identitárias foram guiadas pelos cantores tradicionais". Refere-se a José Gil com um imenso apreço: "Fez uma análise notável de todo este movimento." E cita o pensador português: "O canto recuperou ali a sua função social."

Reivindicações "ainda não enterradas", mas que hoje se transmitem sobretudo pela escuta: "Importante é que o público queira saber como somos e não o que somos." Deste como, diz ser "o modo de vida de nós, os cantores", porque "a polifonia é uma parte do nosso ser mais profundo, é um acto importante que faz de nós testemunhas vivas da Córsega!".

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